O que pode mudar para o
Brasil e o Mundo
Por Ana Beatriz Anjos
Texto produzido e distribuído pela agência
Pública, 10/10/2016
O dia 9 de novembro de 2016 entrou para
a história como a data em que o ex-apresentador de TV e bilionário Donald
Trump superou a concorrente Hillary Clinton e chegou à presidência
dos Estados Unidos. O republicano contrariou as previsões de especialistas e da
própria imprensa norte-americana ao levar os votos de 279 delegados do Colégio
Eleitoral contra 228 de sua adversária.
Logo após a consolidação do resultado
das eleições, a Pública ouviu o professor de Relações Internacionais
da PUC-SP Reginaldo Nasser para entender os significados da vitória de
Trump não só nos Estados Unidos, mas no mundo. Nasser abordou a
frequente comparação entre o novo presidente norte-americano e o deputado
federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), alçado ao posto de ícone do conservadorismo no
Brasil.
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Reginaldo Nasser / Foto Vermelho.org
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Em 45 minutos de conversa, o professor
explicou também as diferenças entre o contexto norte-americano e brasileiro no
que diz respeito à ascensão de lideranças como Trump. Destacou, ainda, a
projeção de Bernie Sanders, ex-pré-candidato democrata à presidência,
como sinal de que há espaço para movimentos de reação a propostas de direita.
“Fazer com que os Estados Unidos voltem a ser grandiosos” (“Make America
great again”): esse foi o slogan adotado pela campanha de Donald Trump.
Qual o seu significado no plano internacional?
Não avalio que haja diferenças entre Trump
e Hillary. Cada vez mais, e já há muito tempo, os Estados Unidos mantêm,
principalmente em política externa, aquilo que chamamos de “política de
Estado”, ou seja, as mudanças de governo não alteram substancialmente a
política externa. Precisamos saber onde se formulam as decisões e os grupos de
influência – o Congresso é um. O Congresso é formado pelos partidos mas também
pelos lobbies. Eles, por vezes, congregam deputados ou senadores
dos dois partidos. Ou seja, acaba-se chegando a certos consensos. Vamos pegar a
questão dos imigrantes: hoje mesmo fui pesquisar e, durante os oito anos de
governo Obama, foram deportadas 2,5 milhões de pessoas, um dos maiores números
da história dos Estados Unidos, se não o maior. Isso fora a quantidade de gente
que não foi autorizada a entrar ou que foi convidada a “sair voluntariamente”.É
uma marca muito forte [do governo Obama], apesar de ter um discurso mais
brando, dos democratas. O estilo diferencia muito; o estilo democrata supõe, em
geral, uma formação em universidades mais qualificadas, são pessoas que têm um
discurso, vamos dizer, mais civilizado. Não é só agora, você vê como era o [John
F.] Kennedy [democrata], muito diferente do [Richard] Nixon
[republicano] que veio depois, do Lyndon Johnson,
democrata, você tem o Jimmy Carter [democrata], aí vem o Bush
[republicano]. Você tem o estilo, formação, tudo muito diferente. E isso,
entendo, nos desvia a atenção das questões concretas. Quem entrou na guerra do
Vietnã pouca gente lembra ou sabe: foi o Kennedy. O Nixon
foi último a apagar as luzes, matou muita gente e acabou aparecendo mais.
Durante o governo de Bill Clinton, os Estados Unidos fizeram muitos
ataques militares, mas aí quando veio o Bush, todo mundo ficou centrado
em sua figura. Guerra do Iraque: houve um voto contrário de uma única deputada,
todos os deputados democratas votaram a favor, mas na narrativa parecia que o
único culpado era o Bush. Há uma narrativa da mídia mais qualificada
– The New York Times, principalmente – sempre pró-democrata, e da
mídia europeia também. Isso acaba nos desviando o olhar. Se você pegar, por
exemplo, política para o Oriente Médio, Hillary ou Trump não muda
nada. O Obama manteve a política de vender
armas e apoiar a Arábia Saudita, vender armas e apoiar Israel, fazer pouca
movimentação de retirada no Iraque e Afeganistão. O apoio indireto ao Estado
Islâmico, que hoje está muito claro, veio de quem? Do governo Obama.
Quando o Obama entrou, ocorreu um fato inédito: ele manteve o secretário
de Defesa do Bush [Robert Gates]. Foi uma coisa muito estranha,
nunca tinha acontecido. Isso denota que há uma política do Pentágono,
independente do presidente. Há grupos – militares, políticos, empresariais –
com muita influência, que dão o tom para uma certa política do Pentágono;
outros grupos dão o tom para a política de imigração.Onde há uma diferença bastante
significativa para questões internas é na área da seguridade social: os
republicanos agem muito mais no sentido da privatização e de dar poder às
seguradoras. Fora isso, é difícil achar uma diferença significativa. E quando
se diz “vai ter mais protecionismo”, temos que avaliar: pode ser em alguns
produtos e não em outros. É muito pontual, funciona muito em torno de grupos de
apoio. Energia: energia limpa equivale aos democratas; petróleo, aos
republicanos. Ok, só que isso não deixa de ter suas políticas protecionistas e
restritivas. O que acho que volta e meia caímos no equívoco, principalmente na
América Latina, é falar “os democratas apoiam e incentivam mais o
multilateralismo”. Eu diria: é e não é. Eles apoiam multilateralismo com a
Europa. Então, por exemplo, o Trump, como Bush filho e pai, Nixon,
todos eles têm discursos muito duros em relação às alianças europeias, tanto
militares como comerciais. Aí, claro, os europeus aproveitam disso para dizer
que é com o mundo, e não é, é com eles.
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Donald Trump em Phoenix, capital do Arizona,
na reta final da campanha, em outubro
(Foto: Flickr/Gage Skidmore) |
Então, em relação à política para o
Oriente Médio, postura diante do Estado Islâmico e refugiados, por exemplo, não
haveria diferença entre Trump e Hillary Clinton?
Não muda nada, isso é política definida
pelo Pentágono, Secretaria de Defesa. Há um corpo muito mais permanente que não
fica ao sabor dessas mudanças circunstanciais. Como eu disse, em relação à
Arábia Saudita: o Bush apoiou.
A Arábia Saudita foi o único país cujos
diplomatas puderam sair depois depois do 11 de setembro sem ser vigiados. Todo
mundo disse “o Bush se curvou a eles”. Recentemente, foi aprovada uma lei no
Congresso que permite que familiares de vítimas do 11 de setembro
processem outros países [por vínculos com os ataques], e Obama vetou
para proteger a Arábia Saudita. Israel: de todos os presidentes, Obama
foi o que mais mandou dinheiro para Israel em armas etc. Outra coisa interna:
militarização da polícia americana, há um auge com Obama. Com isso, não
estou querendo dizer que Obama é um traidor, mas é que ele não tem
controle. É uma máquina, na qual há diversas elites que se cruzam, articulam e
acabam dominando o processo. Não é um presidente sentado em uma sala com uma
caneta nas mãos que vai resolver isso.
Em relação à América Latina e ao Brasil, o que
podemos esperar?
Também não muda nada. É o único ponto em que
concordo com Temer na minha vida, pois ele deu uma declaração dizendo que não
muda nada. Agora, tem esses arranjos, feitos frequentemente, de lobbies no
Congresso. Vamos supor, na época do Bush tinha o lobby do álcool
e o lobby do petróleo. O presidente pode ser influenciado por um
lobby ou outro, mas não é de iniciativa própria dele. São esses grupos que
vão impulsionando essas políticas pontuais.
Durante o período eleitoral, Trump criticou
a globalização e se aproximou do protecionismo. Economicamente, o que
representa sua vitória?
Tem inclusive uma questão histórica aí que volta e
meia aparece: o momento em que os Estados Unidos tiveram projeção internacional
foi o pós-Primeira Guerra Mundial, quando o presidente era Woodrow Wilson,
um liberal, ou “liberal internacionalista”, como se definia. Foi Wilson
que bolou toda a Liga das Nações, e quando foi para assinar a entrada dos EUA
na Liga – que é, vamos dizer, a pré-ONU –, isso teve que passar pelo
Senado, que rejeitou, um grupo de senadores se opôs. Os liberais denominaram
esse grupo isolacionista, e ficou esse rótulo. Quando falamos em isolacionismo,
a palavra não designa o que é real: após 1909, os EUA não se isolaram de jeito nenhum,
não entraram nas coligações com os europeus, mas não se isolaram. Vejo, de
certa forma, repetir isso com o Trump: ele não é isolacionista coisa
nenhuma, como é que vai isolar a maior economia do mundo? São palavras jogadas
ao vento. Há uma internacionalização que não é o estilo dos liberais
americanos. O que seria esse estilo? Em primeiro lugar, multilateralismo com a
Europa. Isso que o Trump está fazendo se coaduna com a atividade da Inglaterra.
Antes do resultado das eleições, dei uma entrevista para o [jornalista] Luis
Nassif em que disse: “olha, Nassif, está pintando a repetição da
dobradinha Ronald Reagan-Margaret Thatcher. Vai ser Theresa May [primeira-ministra
inglesa] e o Trump”. Está acontecendo uma divergência entre as elites
financeiras e comerciais, tanto nos EUA como na Inglaterra, mas não é que é
contra a elite, isso é uma análise errada. Você tem um grupo estabelecido em Wall
Street que apoia a Hillary e outro grupo surgindo que apoia o Trump.
Documentos vazados pelo Wikileaks mostram que Wall Street apoia Hillary,
isso é fato. Agora, tem um grupo financeiro apoiando Trump, é uma cisão,
como também ocorre na Inglaterra. Como se explica o “sim” ganhar no
plebiscito [pela saída do Reino Unido da União Europeia] por mero
acaso? Na Inglaterra também há uma imprensa de elite, liberal – The
Guardian, The Economist – que pregou contra o Brexit e há a
imprensa marrom, desqualificada, apoiando. E teve apoio popular. Como essa
imprensa marrom funciona? Com dinheiro, alguém está financiando. Há, portanto,
uma clara divisão entre as elites. Fareed Zakaria, um liberal
internacionalista que trabalha na CNN e Newsweek, e o Timothy Ash,
os dois escreveram há dois ou três meses dizendo que o
liberal-internacionalismo precisa ser salvo, está sendo atacado pelo populismo.
E o que eles chamam de populismo? Trump e os movimentos de direita na
Inglaterra e Europa em geral. Há uma divergência na elite econômica capitalista
global. Mas não significa isolacionismo, não tem sentido isso.
O filósofo Slavoj Žižek escreveu
recentemente que a eleição de Hillary Clinton seria tão ruim quanto
a de Trump, pois a democrata representa o establishment,
o status quo “de uma situação em que gradual mas inevitavelmente
deslizamos para catástrofes ecológicas, econômicas e humanitárias”. Qual a sua
opinião em relação a isso?
Concordo plenamente com Žižek – eu só não
votaria no Trump. É a mesma coisa em relação à política de Israel: o que
muda para os palestinos estar no poder o Partido Trabalhista ou Netanyahu
[ex-primeiro ministro de Israel, líder do partido conservador Likud]?
Nada. Outra coisa que não mencionei: muito se diz que a Hillary é mais
liberal na questão de gênero, aborto, direitos. Pode ser, mas isso tudo não
depende muito do governo federal. No dia das eleições nos EUA, foram votadas
outras medidas nos estados, entre elas, a legalização do porte de maconha,
aprovada em sete estados [três estados aprovaram o uso recreativo da droga, e
outros quatro, seu uso medicinal]. No dia em que um presidente conservador foi
eleito, alguns estados, por meio de votações específicas, foram, vamos dizer,
por uma política mais liberal, independentemente do presidente da República.
Assim como há votações sobre aborto, por exemplo, e outras que podem ser até
mais à direita que ele também. Estou dizendo que não muda nada, mas é claro
que, muitos grupos, em termos simbólicos e políticos, vão se ver fortalecidos.
O Trump fez um discurso muito mais virulento que a Hillary em
relação aos imigrantes. O cara da esquina, que já é fascista, vai crescer, como
aqui no Brasil muita gente começou a mostrar a cara. Esse aspecto muda, mas não
é um aspecto de políticas concretas. Há um estado de espírito, vamos dizer
assim, mais favorável a esse discurso [conservador], afinal é o presidente da
República falando. A questão dos negros mesmo: foram mortos para burro durante
o governo Obama, mas, por outro lado, ele fez um discurso contrário a
isso, ia às manifestações, havia uma presença simbólica. Pode esquecer isso com
o Trump. Voltando a Israel, vi a afirmação do ministro da Educação [Naftali
Bennett], o cara se vê fortalecido.