quarta-feira, 15 de junho de 2011

SAUDADE


"De longe te hei de amar- da tranquila distância em que o amor é saudade e o desejo, constância." (Cecília Meireles)

Acabo de olhar essa monstruosa lua soberana no céu e me resignei com o fato de que jamais conseguirei fugir da minha condição lunática.

Lua acaba me remetendo também (digo também para ficar claro que ela sempre me remete a um milhão de sentimentos diferentes) a uma sensação de nostalgia.

E falar sobre saudade é antes de tudo, um ato de coragem, porque é um sentimento de extrema complexidade pelas tantas formas que se apresenta.

Afirmam que saudade só existe na língua portuguesa. Eu fico duvidando dessa afirmação. Custo a aceitar que outros povos não consigam expressar com exatidão esse sentimento.

Em inglês se diz miss you. Miss numa de suas traduções é perder. Então poderíamos pensar que estarão dizendo “perco você” o que também pode significar a falta que você me faz. E por estar perdendo, está sentindo a dor da perda, da falta. E por conseqüência se chega ao sentimento da saudade.

Isso é uma lógica barata, mas pertinente.

Saudade então não passa de uma constatação da perda.

O que é saudade senão a privação de algo e quando esse algo é o amor, ai, ai, ai.


Dizem também que saudade é coisa de espírito desocupado. Como ocupar o espírito se ele está permeado de saudade? Eu não consigo. Meu pensamento fica como que tomado.

Podemos falar da saudade de um tempo. Lembro de várias partes da minha vida que me remetem a uma saudade de cheiros e luzes. Das tantas lembranças de infância, tem uma delas que me deixou uma cicatriz na palma da mão esquerda. Essa lembrança é recheada de fatores que me fazem sentir saudade.

Todos os dias, no final da tarde eu ia à pharmácia (escrevi com PH para lembrar também que nessa fase eu escrevia assim por pura influência da escrita de meu avô em seus livros geniais) buscar ampolas de injeção para as minhas experiências - fossem elas das famosas brincadeiras de médico (eu queria ser médica sim) ou para experiências diferentes (sobrava sempre para as minhas bonecas que viviam furadas). Era daquelas de vidro com tampa de borracha e um metal em volta. Coisa de época mesmo.

Correia, o farmacêutico amigo e querido como um tio, separava para mim, todos os vidrinhos usados no dia. Era uma tarde quente de verão. O Leblon (bairro do Rio de Janeiro, onde nasci e fui criada) tinha um ar de cidade do interior. Ruas tranqüilas e a minha ainda era sem saída. Imaginem a Rua Cupertino Durão sem saída?!

Na volta, o céu ficou com aquela luminosidade diferente de quando algo está para acontecer e o cheiro forte da mistura de terra e asfalto confirmava que chuva de verão ia desabar. E como sempre, num passe de mágica ela desarmou toda e qualquer possibilidade de fuga. Resolvi correr para chegar em casa menos encharcada, tropecei (me lembro até da fissura da calçada que me nocauteou) e caí de frente e com as mãos tentei salvar meu rosto. Os vidros que estavam na mão esquerda quebraram e rasgaram a minha carne e ali deixaram a marca que até hoje tem cheiro de chuva pra mim. Sinto saudade dessa época em que minha maior preocupação era se o Correia tinha dado muitas injeções naquele dia.



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Fonte: Texto original da atriz Lúcia Veríssimo 

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